A anatomia da mente – 09/12/2021 – Luciano Melo

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Prelúdios a pilar com uma história antiga, cuja introdução poderia estar esquecida em páginas policiais de um periódico já extinto. Porém se desenrolou imprevisível e alterou os rumos da ciência.

O início: um varão furioso se aproximou de uma moça e disse que iria a jogar em um saco pleno de cobras venenosas.

A partir de logo, a menino passou a ter pesadelos recorrentes em que se via presa junto às víboras. Quando próxima da juventude, por outras razões, tornou-se epiléptica. Suas convulsões eram precedidas por assustadoras reminiscências da ameaço vivida, mais visões de serpentes.

A pequena recebeu tratamento médico, entretanto os medicamentos não impediram novos ataques epilépticos. A terapia que restava era retirar cirurgicamente a raiz de seu problema. Por isso, a jovem foi submetida a uma neurocirurgia. Esses eventos ocorreram na primeira metade do século pretérito e marcaram os primórdios do estudo do cérebro humano. Foram ainda mais especiais pois trouxeram a pretensão de que, literalmente, estávamos prestes a tocar a mente humana.

Quem operou a jovem foi o ilustre Wilder Penfield (1891–1976). Ele abria os crânios de seus pacientes enquanto acordados e, dessa forma, tinha a oportunidade de ver o que acontecia, quando estimulava regiões cerebrais. Seguindo esse expediente, havia mapeado áreas cerebrais responsáveis pela realização dos movimentos e as outras ocupadas em nos trazer o tato e a dor.

Penfield notou uma cicatriz no lobo temporal recta da pequena, provavelmente a culpa da epilepsia. Investigativo, o neurocirurgião fez estímulos ao volta daquela ferida. Imediatamente sua paciente começou a manifestar: "eu vejo alguma coisa vindo até mim, não deixem eles chegarem perto". Apavorada, a moça escutava sons hostis.

A repugnante experiência da jovem não ocorria se os eletrodos estimulassem outras partes cerebrais. Dessa forma, o médico referiu àquela porção encefálica porquê o repositório de memórias. Mas seus estímulos reacenderam mais do que recordações. Trouxeram à tona emoções que acompanhavam a experiência original, o raciocínio sobre o significado do evento, mais a própria tradução do quidam sobre o caso.

O todo integrado era mais do que recordações factuais, mas, sim, memórias evocadas, a retomada de pensamentos originados naquela situação, junto às emoções que as coloriram. Penfield logo considerou que o estudo desses fenômenos era "o início de uma fisiologia da mente".

A partir desse ponto, ele depositou suas esperanças em encontrar um caminho para encontrar as regiões cerebrais que abrigavam a mente. Tal qual havia mapeado as bases cerebrais para os movimentos dos membros, encontraria os sítios anatômicos que unificariam a consciência, memória e a habilidade de experienciar.

Quando testemunhamos um evento, uma ergástulo de conexões de neurônios se forma. Recordaremos o caso, reviveremos emoções e razoaremos novamente, sempre ao se fazer ativas estas conexões. Esse é o concepção de engrama: uma via permanente constituída de muitas sinapses formada em resposta a uma experiência individual. Penfield passou a estudar as propriedades elétricas dos engramas.

Porém até hoje não temos o entendimento pleno do engrama. Nem ainda encontramos um deles, em sua totalidade. Muito menos dominamos os fenômenos químicos que o fazem funcionar e se atualizar. Portanto, não sabemos quais modificações ocorrem nos neurônios para que memórias se consolidem e desapareçam. Tampouco, porquê elas mudam, conforme revivemos nosso pretérito e reinterpretamos os acontecimentos antigos.

Penfield foi um pioneiro em provar que o cérebro tem centros integrativos, conectores das recordações aos julgamentos e emoções. É muito provável ser o engrama a estrutura fundamental para essas junções.

Provavelmente, o neurocirurgião pensou que se mapeasse os engramas, leria a mente, fazendo-a atingível à sua compreensão e ao seu toque. Confirmaria que a nossa experiência de ser depende de porquê nossa atenção recupera nossas memórias. Porém, Penfield não obteve levante triunfo em localizar a mente no cérebro, a despeito de grandes sucessos conquistados, marcados por novas técnicas de neurocirurgia e a compreensão de alguns mecanismos do funcionamento cerebral.

Enfim somos mais complexos, temos características que influenciam nossa mente, porquê originalidade, otimismo, humor. Às vezes somos nostálgicos, outras tentamos nos distanciar do pretérito. Nossa mente não está em uma secção de nosso cérebro, ocupa todas as suas partes, e se expande, situando-se em todo o nosso corpo. O conjunto de nosso organização é mais multíplice do que nosso cérebro.

Referências:
1. Leblanc R. Pavlov, Penfield, and the physiology of the mind. Neurology. 2019 Mar 19;92(12):575–8.

2. Leblanc R. The White Paper: Wilder Penfield, the Stream of Consciousness, and the Physiology of Mind. J Hist Neurosci. 2019 Oct 2;28(4):416–36.

3. Tonegawa S, Liu X, Ramirez S, Rotundo R. Memory Engram Cells Have Come of Age. Neuron. 2015 Sep 2;87(5):918–31.


4. Denny CA, Lebois E, Ramirez S. From Engrams to Pathologies of the Brain. Front Neural Circuits. 2017;11:23.

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