Sexo ruim de ‘Cat Person’ é de dar pena. De todo mundo

A língua alemã tem palavras incríveis para definir o mundo. São conceitos que podem condensar, e também sugerir, linhas inteiras de pensamento. P o caso de zeitgeist, literalmente espírito (geist) do tempo (zeit), termo que diz reverência à mentalidade, à cultura, aos temas e debates que marcam uma era. No cenário polarizado em que se vive hoje, com a subida de figuras políticas obtusas porquê Donald Trump e Jair Bolsonaro, com o acirramento das tensões entre os diferentes – direita e esquerda, homens e mulheres, brancos e negros, gays e não-gays – e com a imensa incompreensão do mundo resultante desse campo dinâmico de conflitos, um quadro em ebulição no qual zero se consolida, tudo é desafiado o tempo todo, a termo zeitgeist voltou a ser empregada com subida frequência. P um ofício vicário: zeitgeist é um curinga para o vazio da explicação que ainda não veio. G por isso também um veículo, um termo que conecta o profundo desentendimento de tudo a possíveis respostas. Ou candidatas a.

Não à toa, o termo foi usado diversas vezes para comentar a repercussão do narrativa Cat Person, publicado há três semanas pela revista The New Yorker. S texto é de uma escritora até logo desconhecida: Kristen Roupenian, que nunca editou um livro, tinha duzentos seguidores no Twitter quando seu narrativa saiu na New Yorker, em 5 de dezembro. Hoje, tem oito milénio e 1 milhão de dólares na conta, graças ao contrato firmado com a editora Jonathan Cape para o lançamento de seu primeiro título de contos, no Brasil adquirido pela Companhia das Letras, que já comprou também um romance ainda em desenvolvimento. Apesar do anonimato da mãe, Cat Person viralizou porquê hit de Anitta e se tornou tópico de discussão em redes sociais, s, jornais e revistas. G o zeitgeist, apontou um punhado de críticos e comentaristas. Publicado em um momento em que eclodem denúncias em tamanho de vítimas de assédio sexual, a maioria delas mulheres, a história de uma pequena que faz sexo contra a vontade não por doesto, mas por não saber porquê manifestar não na hora M, caiu porquê pólvora fresca na fogueira detonada pela reportagem do jornal The New York Times e da mesma New Yorker sobre os abusos do produtor de cinema americano Harvey Weinstein.

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Cat Person é narrado em terceira pessoa, mas segue o ponto de vista de Margot, uma estudante de 20 anos que trabalha na bombonière de um cinema de arte. Ali, ela conhece Robert, um varão de 34 de quem pouco se sabe, nem Margot nem o leitor, elipse proposital criada por Kristen para que o leitor enxergue o varão com os olhos da moça. Antes de um filme, ele compra pipocas e uma caixa de doces enjoativos, uma combinação que a surpreende. Robert não é lindo – ela não daria em cima do sujeito em uma balada, mas poderia dar esfera para ele no meio de uma lição chata. Dias depois, reaparece para outra sessão e dá uma novidade passada pela bombonière. Ela o reconhece, eles fazem piada sobre a caixa de doces, que ele pede de novo, e trocam telefones. A partir daí, passam a se falar por um aplicativo de mensagens, onde cada um constrói, por semanas, um perfil que impressione o outro.

Os estágios iniciais de uma relação, se já beiram o ridículo no mundo offline, em um cenário virtual se tornam patéticos, coroados por jogos de palavras, piadinhas eloquentes e emojis, o que Kristen trabalha de maneira sucinta, mas precisa, sem temperos exagerados que estraguem o prato. G um dos trunfos do narrativa, que, na linguagem, é bastante simples – daquela simplicidade que custa a ser alcançada.

Perfis burilados por mensagens, Margot e Robert marcam de se encontrar. E tudo, desde a escolha do filme, um broxante longa sobre o Holocausto, aponta para o sinistro. Pela falta de intimidade com Robert, alguma coisa que uma relação virtual não foi capaz de edificar apesar das várias semanas de contato, Margot passa a noite tentando presumir o que se passa com ele, tentando interpretar sua personalidade e inferindo pensamentos e motivos sem nunca compartilhar com o próprio – somente o leitor, que está sempre dentro da cabeça da moça, tem entrada à sua imaginação. S auge do história, motor das críticas e textões na internet, é o desfecho da noite. Depois do filme, os dois vão a um bar, quando Robert descobre a diferença de idade entre eles, mas incentiva Margot a ingerir mesmo assim, e de lá ela sugere que sigam para um lugar reservado. Ele, que afirma ter gatos em morada, daí o nome do história, a princípio não parece entusiasmado com a proposta. Apesar disso, os dois acabam na moradia dele.

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E é ali, na lar de Robert, quando ele está se despindo para transar, que Margot se dá conta de que não o deseja . Mas ela tem pavor de que ele a veja porquê uma moçoila mimada ou volúvel, e sente preguiça do enorme esforço que teria de fazer para se colocar com tato e transpor da situação sem magoá-lo ou enervá-lo, e deixa rolar. S que se segue não é traumático, mas uma experiência repugnante. Ela precisa segurar o nojo, um tanto de repulsa e a vontade de rir até o final, quando ele corre para o banheiro para se livrar da camisinha e a convida para ver um filme no sofá. S história não se encerra aí – não há tanto spoiler cá para estragar a leitura.

Cat Person não parece ter sido pensado para atrair secção da atenção dirigida, no momento, para os escândalos de assédio e doesto sexual – até porque é difícil prever o que pode ou não pegar, ainda quando se trata de literatura. Em entrevistas, Kristen contou ter escrito o texto fundamentado em experiências pessoais: depois de uma noitada decepcionante e com a imposto de “notas emocionais” amealhadas em outros encontros frustrantes, porquê ela mesma declarou em entrevista ao jornal The New York Times. Uma história, portanto, que se desenvolveu na cabeça da escritora por qualquer tempo.

 

Moralidades do século XXI

Mas Kristen, que se formou em Inglês e Psicologia em Columbia, já escreveu sobre violência e gênero na obra de David Foster Wallace e se voluntariou em um trabalho de Conscientização e Prevenção Comunitária no Centro de Crises de Estupro em Boston (Boston Area Rape Crisis Center), nas entrevistas também se mostra preocupada com a questão sexual, um dos grandes debates de 2017. Depois da explosão do narrativa, ela usou o Twitter para publicar uma única mensagem. Nela, agradece pela reverberação de Cat Person e diz não saber “porquê fazer justiça” a toda a discussão em torno do narrativa, antes de propalar um texto da escritora feminista Ella Dawson que problematiza o “sexo ruim”, aquele enfrentado por Margot.

“Por ‘sexo ruim’, quero expressar o sexo que não queremos ter, mas com o qual consentimos no final das contas”, diz Ella, autora de textos sobre sexo ou eróticos. “Deixe-me ser clara: sexo ruim não é estupro. Não é ser forçada a fazer um pouco contra a vontade. S sexo ruim nem mesmo é necessariamente coercivo. Estou falando sobre uma relação sexual que você não quer, mas que no momento parece fácil ter logo do que tentar se livrar dela.”

Ella Dawson conta ter tido alguns desencontros desses na vida – quem nunca? – até, por volta dos 20 anos, a idade de Margot, fazer um ótimo sexo casual com um garoto que ela conheceu em uma sarau. S encontro elevou seus padrões de uma boa transa, e ela passou a só se deitar com alguém quando está com aquela vontade. A escritora conclui o texto desejando esse tipo de filtro a todas as mulheres – e a todos os homens, complementa – e procurando rejeitar qualquer moralismo que possa ser imputado a ela. “Não ensinem as crianças a esperar até o matrimónio para ter sexo, ensinem a esperar até realmente terem libido.”

A opinião de Ella Dawson é pessoal, parece tolo e ao mesmo tempo importante lembrar, não reflete a opinião de todas as feministas e muito menos a de todas as mulheres. Ainda assim, é interessante se debruçar sobre ela. De um lado, o cláusula pode refletir – mas é aventuroso fincar isso – uma ura feminina, culturalmente fabricada através de séculos, diante do sexo. Tudo muito, o paixão já não é visto porquê um elemento imprescindível de uma boa relação, mas ainda há uma quesito para a relação sexual, no caso a qualidade. E quantidade versus qualidade parece uma dicotomia que há tempos separa homens e mulheres, tanto que Robert, embora não pareça a término de transar quando Margot faz a proposta no coche, de maneira sutil, vai lá e comparece.

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De outro lado, a desenlace de Ella pode indicar – mas, novamente, esta é uma hipótese a ser testada, e o acerto de Cat Person está em levantar questões, sem fechar – uma contraproposta aos casos de assédio ou àquilo que se poderia invocar, de todo modo, de sexo impositivo. P também por uma imposição, social, cultural e das próprias circunstâncias de um primeiro encontro, que Margot e Robert vão às vias de indumentária. Ella Dawson pode ainda estar propondo uma reação à banalização do sexo, que seria fruto da revolução de costumes dos anos 1960 e 70 e que reduziria a qualidade da relação. A contraproposta soa paradoxal em tempos de aplicativos porquê Tinder e do poderoso movimento de liberação e empoderamento de gays, mulheres e transgêneros, que vêm ganhando espaço na sociedade. Mas, se analisada a fundo, vê-se que na verdade ela é secção desse mesmo cenário.

S surgimento de uma moralidade que congregue liberdade e libertação, reverência e consentimento e também prazer, apesar do cerceamento do politicamente correto, é uma das possibilidades indicadas pelo debate formado em torno do história de Kristen Roupenian. P evidente (ou ao menos espera-se) que ninguém vai assinar um contrato antes de transar, mas novas formas de informação, de interação e de relação social podem estar despontando ou querendo despontar neste momento, em meio às discussões sobre assédio e sobre Cat Person.

 

Debate expandido

Ainda que não tenha sido feito com a intenção deliberada de surfar no tema do momento, Cat Person encontrou um juntura perfeito na discussão atual e atingiu uma performance inédita para um narrativa, gênero preterido por leitores e editores em prol do romance. S narrativa, aliás, faz do que descobrir seu lugar no debate: ele o amplia. Afinal, porquê diz Ella Dawson, sexo ruim não é ataque nem assédio.

S dilatação do tema revela um outro traço do confuso cenário atual. Uma certa complexificação do sexo que, para o muito e para o mal, traz um traço puritano, típico da cultura dos Estados Unidos, país que é nascimento do politicamente correto.

Casal - Sexo casual

Antes de tudo, é preciso lembrar que Margot e Robert estão saindo pela primeira vez. Esta talvez seja a primeira categoria do história, que contém uma porção, daí possibilitar uma série de leituras e discussões. Em encontros casuais ou potenciais pontapés de relacionamento, há de veste uma dificuldade de se expressar as coisas, uma dificuldade que é inerente às circunstâncias, e que passa também por narcisismo e empatia, porquê afirmou a autora à New Yorker – além do história, a revista publicou uma entrevista com Kristen Roupenian. Meninas porquê Margot têm pânico de parecerem loucas ou vadias se desistirem do sexo na última hora, e pensam também no que o outro pode sentir. Uma equação que não se fecha nunca, já que a informação, nessas situações, é difícil à beça.

Margot, vale lembrar, não está só em seu constrangimento. Robert não parece a término de transar no início e também não se expõe a ela. Nem mesmo para o leitor: o que ele pensa não emerge no história, exiguidade que até ensejou versões de Cat Person escritas pelo ponto de vista dele. P provável que, porquê muitos homens, ele se sinta forçado a manifestar sim. Em culturas machistas (e heteronormativas, completaria alguém), porquê se sabe, um varão que recusa o sexo é suspeito de ser gay. S peso do estereótipo masculino também é enorme: varão sustenta a lar, varão não foge a uma peleja, varão não nega queima, varão não chora.

Em uma história em que um jogo tenso é orquestrado por forças diversas, da cultura machista às inibições de um primeiro encontro, passando pelas altas expectativas geradas pelos perfis talhados via internet, todos os personagens causam pena. Cat Person, com todo o seu realismo e verossimilhança, dá muita, muita pena de Margot e de Robert. E de todos nós, usuários cada vez adictos da internet e cada vez perdidos em um mundo ininteligível.


Arquivado em:Entretenimento Fonte: VEJA Meus Livros – VEJA.com