‘Lugar de mulher é na obra’: o projeto que ensina mulheres de baixa renda a reformar as próprias casas

Paula Martins da Silva, de Belo Horizonte, integra turma de projeto que ensina mulheres a planejar e executar reformas em lar BBC Brasil

Numa rua de terreno batida a 16 km do meio de Belo Horizonte, Ana Paula Souza, de 36 anos, troca sozinha o piso do quarto da lar em que vive com a filha de três anos, uma sobrinha e seu pai.

Perto dali, Adriana Silva, de 40 anos, que também não tem ofício fixo, ergue uma parede por conta própria no lugar que abriga seus três filhos.

Se na hora da construção é o varão que costuma tomar as decisões, nesta dimensão da capital mineira — um terreno do tamanho de 40 campos de futebol ocupado desde 2009 — as mulheres estão começando a tomar as rédeas.

A iniciativa é da arquiteta Carina Guedes, de 32 anos, que há três anos desenvolve um projeto de assistência técnica a mulheres de baixíssima renda na cidade.

S projeto, batizado Arquitetura na Periferia, nasceu da pesquisa de mestrado de Carina e já soma bons resultados e pedestal internacional.

A primeira edição ocorreu entre setembro de 2013 e junho de 2014, com três famílias. Por dez meses, a arquiteta fez visitas semanais ao terreno, batizado ocupação Dandara, para se encontrar com as futuras "mestres de obras".

Logo nas primeiras reuniões, as moradoras receberam um "kit levantamento" para que pudessem riscar e medir as próprias casas: pasta, trena, prancheta, lápis, caneta, borracha, apontador, papel branco, manteiga e vegetal, conjunto de notas, etiquetas, um roteiro de trabalho e uma máquina fotográfica.

Nos encontros seguintes, avaliaram problemas e planejaram soluções. Adriana queria colocar acabamentos e mudar a forma de sua moradia de 60m2. Ana Paula sonhava em perfurar novos cômodos, ter piso e estrutura hidráulica.

Mão na tamanho

Na hora de conciliar os orçamentos com a verba disponível (R$ 9.000 emprestados por Carina e R$ 3.000 que as participantes economizaram juntas), as alunas da primeira turma sugeriram que aprendessem a fazer as reformas para forrar com mão de obra.

Foram dois dias de trabalho prático em técnicas de construção com a pedreira Cenir: quanto cimento e areia devem ser colocados no reboco, porquê peneirar a areia, qual é a forma certa de usar o prumo. Quem jogava reboco na parede sem deixar a tamanho desabar no pavimento ganhava aplausos das colegas.

Adriana, que faz trabalhos eventuais porquê faxineira, conseguiu fechar uma parede em sua moradia e penetrar outra. Assim, não precisou terçar o quarto do fruto jovem para chegar ao seu. Fez reboco e piso na lar toda, pintou as paredes.

"Levantar parede foi o que gostei. Veio uma professora, aquela mulher é demais. Eu vivo sozinha, e vi que podia fazer o que queria sem precisar de outra pessoa, de um varão para ajudar", afirma.

Na moradia de Ana Paula, demolição e alvenaria. Levantaram a parede de um quarto, reduziram o banheiro e construíram a parede da cozinha, tirando o fogão da sala.

"Nunca tinha imaginado colocar a mão na tamanho e falar 'eu que fiz'. S traje de ser uma mulher (pedreira ensinando) aumentou nossa autoestima, pensávamos 'nossa, mulher pode fazer o que quiser, basta querer'", lembra a moradora.

A idealizadora do projeto diz ter optado por trabalhar exclusivamente com mulheres por apostar, entre outros pontos, que isso facilitaria o relacionamento e a geração de laços de crédito.

Também pesquisara experiências de financiamento que mostravam que mulheres tendem a se comprometer do que os homens com o muito-estar da família.

"Tinha receio de que as mulheres se inibissem com homens, pois os homens tendem a descobrir que sabem . Quando participei de cursos semelhantes em outros ambientes, os homens em universal tomavam as falas", afirma a arquiteta.

A teoria de trabalhar em esquema de microcrédito aliviou o bolso das mulheres, que desembolsavam muro de R$ 150 por mês para remunerar o empréstimo feito por Carina. Também fortaleceu os laços do grupo, afirmam as envolvidas, já que todo o numerário ficava na conta de uma delas.

Para viabilizar a segunda turma do projeto, Carina passou a integrar a associação Arquitetos Sem Fronteiras, que trabalha com transformação social pela arquitetura, e conseguiu espeque da ONG internacional Brazil Foundation.

Quatro outras mulheres já estão trabalhando nas reformas na Ocupação Dandara, com R$ 5 milénio para microfinanciamento, e outro grupo será formado em outra ocupação da cidade.

"Eu desenhei minha morada, estou me admirando por isso. Quando levei o ilustração na loja de cerâmica, o rapaz até me perguntou se tinha feito curso", diz Flávia dos Santos, 36 anos, da turma atual do projeto.

S objetivo da idealizadora é transformar o Arquitetura na Periferia em negócio social e incorporar conhecimentos de outras áreas para melhorar a qualidade de vida das famílias usando recursos disponíveis na região.

"S que faço é uma microintervenção, mas os moradores precisam de muitos outros tipos de escora, porquê psicólogos e médicos. As pessoas têm uma visão de que estou sendo uma espécie de Madre Teresa de Calcutá, porquê se fosse boazinha de estar fazendo isso. Mas na verdade estamos tentando ampliar a atuação do arquiteto para uma demanda que é real e urgente."

S déficit habitacional no Brasil era de 6 milhões de moradias em 2014, segundo estudo da Fundação João Pinheiro.

Minas Gerais tem o segundo déficit do País (529.270 moradias), detrás exclusivamente de São Paulo, e famílias com renda mensal de até três salários mínimos, porquê as do projeto em BH, somam 84% das pessoas sem lar.

Apesar dos avanços, a situação das moradoras beneficiadas pela iniciativa na ocupação ainda é de instabilidade jurídica. Uma construtora reivindica a posse da dimensão, e o caso se arrasta na Justiça desde 2009.

"Não posso expor que é impossível ter lixo, mas hoje a Dandara está muito consolidada do que outras ocupações. No primícias as pessoas tinham esse pavor, mas estamos confiantes", afirma Ana Paula.

S impacto do projeto também parece ir fundo nas ruas de terreno da ocupação. Em uma palestra sobre a iniciativa na Escola de Arquitetura da UFMG (Universidade Federal de Gerais), Luciana da Cruz, da primeira turma, disse que deixou de rasar os cabelos e hoje se sente formosa.

"Se mudo o espaço em que estou, vou me mudando também. Também fiz pequenas reformas em mim", disse.

Fonte: R7 - Gerais