Ortografia é assunto no Senado; leia entrevista com prof. Evanildo Bechara

O Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90) entrou em vigor no Brasil em 1º de janeiro de 2009 e, desde então, os usuários da língua escrita vêm passando por um processo de aprendizado das novas regras e de adaptação a elas. Como já foi dito inúmeras vezes, no que se refere ao português do Brasil, a mudança atingiu 0,5% do léxico, o que, convenhamos, representa uma parcela bem pequena do conjunto de palavras do idioma.portugues em dia

No quinto ano de vigência do Acordo, o acento agudo nos ditongos abertos das paroxítonas e o trema já parecem coisa do passado. O sistema de hifenização dos prefixos também  ficou bem simples que o anterior, mas, como não se está lidando com uma ciência exata, sobram aqui e ali exceções ou casos em que foi necessário interpretar o documento oficial — à luz, é claro, de seus princípios.

O trabalho de estabilização das normas propostas pelo Acordo foi feito pela Academia Brasileira de Letras, cuja Comissão de Lexicografia tem entre seus membros o lexicógrafo Evanildo Bechara, professor titular da UERJ e da UFF e doutor honoris causa da Universidade de Coimbra. Bechara dispensa apresentações para aqueles que têm na língua portuguesa o seu ofício, pois suas gramáticas são referência para qualquer estudioso do assunto, dentro e fora das universidades.

Apesar de as alterações propostas pelo Acordo terem sido mínimas, como convém a uma boa reforma ortográfica, críticas tanto ao texto do Acordo como à sua interpretação feita pela Comissão de Lexicografia da ABL, responsável pela confecção do VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa), vêm aparecendo na imprensa. Recentemente, diversos sites e jornais divulgaram a existência de um grupo de trabalho técnico, designado pela Comissão de Educação do Senado, cujo objetivo é rever, reformar, revisar ou, quem sabe, revogar o Acordo (AO 90), com base no que esse próprio grupo considera serem “incoerências” ora do Acordo, ora do VOLP.

Um dos coordenadores desse grupo (GTT) vem divulgando uma proposta de “simplificação da ortografia” — exatamente aquela que chegou à imprensa e que foi objeto de celeuma até que o Senado desmentisse tê-la posto em discussão. A proposta, de autoria de Ernani Pimentel, professor de português que atua em Brasília, é polêmica, pois sugere uma transformação radical da ortografia do português, ou seja, a adoção de um critério estritamente fonético (grosso modo, escrever como se fala). Embora ainda não esteja em discussão, a proposta existe e é defendida por um professor a quem coube coordenar os trabalhos de revisão do Acordo Ortográfico na Comissão de Educação do Senado.  Um dos sites de Pimentel, em que apresenta suas ideias, intitula-se Acordar Melhor, pois sua intenção é “melhorar o Acordo”.

Será muito difícil, porém, que uma proposta como essa seja aceita em todos os países da chamada lusofonia, o que seria condição para a sua implantação, já que o Brasil assinou um Acordo de Unificação Ortográfica. Aliás, vale lembrar que o motivo dessa reforma ortográfica, vigente desde 2009, foi o projeto de unificação da ortografia nos países em que o português tem status de língua oficial. A menos que se revogue o Acordo e que se desista da ideia de unificação ortográfica, o professor Pimentel terá de convencer os demais países da CPLP a escrever omem, caxorro, ezérsito etc. A tarefa parece difícil. No Brasil, embora tenha chegado ao Senado, a ideia parece não ter tido ressonância nas universidades, entre os estudiosos da língua.

De resto, há os que, sem apresentarem qualquer proposta concreta de mudança, apontam supostas incoerências no Acordo e conclamam ao debate quaisquer cidadãos que tenham quaisquer propostas.Talvez seja sensato admitir que algumas exceções não são incoerências ou, havendo o entendimento de que o sejam, indicar a solução para eliminá-las sem incorrer em outras “incoerências”.

O assunto pode parecer simples, ao alcance de todos, mas o processo de sistematização da ortografia é repleto de sutilezas e requer o conhecimento especializado de filólogos e demais estudiosos da língua. Se assim não for, estaremos a ponto de respaldar escolhas idiossincráticas apresentadas como “democráticas”.  O que espanta, a esta altura, é que o Senado se tenha mobilizado em prol de uma causa que se resume na suposta incoerência da grafia de uma dezena de palavras do idioma, se tanto.

ENTREVISTA

A seguir, o professor Evanildo Bechara comenta a questão em entrevista ao blog:

Thaís Nicoleti -Recentemente, foi assunto de grande número de reportagens na imprensa um projeto de simplificação da ortografia defendido por um professor de português de Brasília, ora designado coordenador de um grupo de trabalho 

portugues em pautatécnico da Comissão de Educação do Senado constituído com o intuito de rever as modificações da ortografia do português decorrentes da entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990.  O senhor deve ter tomado conhecimento dessas ideias (o “ch” seria substituído por “x”, o “h” inicial seria suprimido etc.). Que pensa o senhor acerca desse projeto? Há vantagens em privilegiar a fonética como critério de ortografia?

Evanildo Bechara – A substituição de “ch” por “x” em qualquer posição na palavra é proposta de um sistema ortográfico chamado fonético, proposta que vem sendo trazida à baila pelo menos desde o século XIX, à qual sempre os especialistas e os usuários responderam com providencial negativa. Muitos são os problemas que tal proposta traz como consequência. A primeira é a extinção dos homófonos não homógrafos, do tipo de seção, sessão e cessão, que ficam reduzidos a uma só grafia: sesão, o que, com certeza, prejudicará a compreensão da mensagem. A segunda é a necessidade de criar novos símbolos ortográficos ou maneira de representá-los: é o caso da diferença entre o “r” de ira e “rr” de terra. Um sistema antigo representava o “r” simples com “r” e o “r” múltiplo com “R”, grafando então ira e teRa. E assim por diante. Elimina-se o “h” de omem e oje, mas como fazer com o “h” dos dígrafos palatais lh (palha), nh (manhã)?

TN – Sim. Uma expressão como “hora H” teria de ser grafada “ora agá” e, a meu ver, perderia o sentido, pois o “h” é o “h” de hora. Enfim,  o argumento em que se baseia a proposta é o de que o processo de alfabetização se tornaria simples e, consequentemente, barato.

EB – Quanto à tese de que tal sistema simplifica o processo de alfabetização, a ciência e a experiência do real mostram-nos que tal relação é falsa. Se fora verdadeira, franceses e ingleses seriam analfabetos por terem grafias abstrusas que as nossas. E eles estão na vanguarda da nossa civilização. Nada substitui uma boa escola e competentes professores.

TN – Ouvem-se críticas ao fato de a última edição do  Vocabulário Ortográfico, pós-Acordo Ortográfico, registrar grafias duplas, como é o caso de “bi-hebdomadário” e “biebdomadário” ou mesmo de “ad-renal” e “adrenal”, “ab-rupto” e “abrupto”, “sub-humano” e “subumano”, “carboidrato” e “carbo-hidrato” etc.

EB – Quanto à duplicidade de grafias em biebdomadário, o caso é frequente em palavras eruditas das ciências e das tecnologias. Grafias duplas como abrupto e ab-ruptoadrenal e ad-renal são realidades da língua, em pleno uso. A forma adrenal, com o encontro consonantal que se profere em Adriano, nos foi legada pelo inglês, por isso corretamente o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa a agasalha, ao lado de outras tantas.

TN - Há quem critique o fato de a ABL ter optado pela grafia “coerdeiro” no Vocabulário Ortográfico, em dissonância com o texto do Acordo, no qual a grafia “co-herdeiro” aparece como um dos exemplos de emprego do hífen (Base XVI). Qual é a sua explicação para isso?

EB – Em de um artigo já expliquei o engano em conservar no Acordo Ortográfico de 1990 a grafia co-herdeiro, novidade trazida pelo ortógrafo português Rebelo Gonçalves, em 1940, e agasalhada pelas reformas de 1943 e 1945. Baseava-se Gonçalves numa pseudodiferença semântica desse prefixo. Desde a reforma de 1911, bem melhor que as sucedâneas, usava-se coerdeiro. Como o Acordo Ortográfico de 1990 está muito ligado à reforma portuguesa de 1945, escapou esse exemplo “co-herdeiro” , que contraria a lição deste último na Base XVI, 1º , b, obs. “Nas formações com prefixo co -  este aglutina-se em geral com o segundo elemento mesmo quando iniciado por o“. Por isso, se escrevo coabitar sem hífen e sem h inicial, terei de escrever coerdeiro, como propõe corretamente o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.

TN – Há críticas ao fato de “paraquedas” ter passado a se escrever sem hífen, enquanto outras formações aparentemente similares continuaram a ser escritas com hífen (para-choque, para-raios, para-brisa, por exemplo). Tenho a impressão de que a grafia “paraquedas” se justifica não só pelo uso que já se fazia antes do Acordo como pelo fato de a palavra ter derivados, uma família de cognatos (paraquedismo, paraquedista), nos quais já se deu a sufixação, coisa que contribui para que se perca a percepção da composição. Como isso não ocorre com os demais termos considerados semelhantes quanto à formação, as soluções gráficas foram diferentes. Gostaria de ouvir a sua explicação.

EB – Tecnicamente, o bom ortógrafo tem de levar em conta a história de cada palavra dentro do léxico, razão por que recomenda a aglutinação das antigas, como girassol, mandachuva, pontapé, paraquedasPara-choque não é similar a paraquedas na história do léxico. Chegará o dia em que para-choque se usará aglutinadamente. Razões desta natureza justificam dizermos que uma reforma ortográfica, como tudo que ocorre nos domínios de uma língua histórica, é objeto de técnicos, e não de um simples usuário, por boa intenção que o mova.

TN – No início da entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990, houve o entendimento de que a grafia “benfeito” substituiria a forma hifenizada “bem-feito”, uma vez que o Vocabulário não trazia a forma verbal “bem-fazer” nem o seu particípio, “bem-feito”. Aparentemente, essa mudança não foi bem-vinda. Ouviam-se muitas críticas a ela etc. Posteriormente, foi lançada uma Errata do Vocabulário Ortográfico em que voltou a aparecer a forma “bem-fazer”, da qual se deduz a grafia “bem-feito”. A ABL voltou atrás?

EB – No caso de benfeito, a Academia não voltou atrás; é que existe o verbo benfazer do qual saem derivados como benfeitor, benfeitoria.

TN – Sim. Vale então a distinção registrada no dicionário “Houaiss”: “benfazer” é praticar o bem, realizar benfeitorias, enquanto “bem-fazer” é fazer algo com capricho, com esmero. Outro caso interessante: a palavra “extraordinário”, no sistema antigo, era vista como exceção à regra de hifenização e hoje ela deixa de ser exceção para ser regra; palavras como “ultrassom” e “ultrassonografia” já se escreviam dessa forma quando o sistema (o antigo) previa uso de hífen (“ultra-som”, “ultra-sonografia”). “Paraquedas” e “paraquedismo” também se escreviam sem hífen mesmo na vigência do sistema antigo, quando oficialmente deveriam ser escritas com hífen e acento (“pára-quedas”, “pára-quedismo”). O uso generalizado foi levado em consideração na hora de propor a mudança?

EB – Essas são decisões que o uso consagra, para depois mudar a fim de atender a um novo princípio.

TN – Professor Evanildo Bechara, o assunto é fascinante e poderíamos falar muito sobre as palavras, sua história, suas mudanças de significado e seu indissociável vínculo com a vida social. Gostaria, finalmente, de que o senhor externasse sua opinião sobre a ideia do GTT do Senado de “democraticamente” abrir a discussão sobre a ortografia, facultando a qualquer cidadão o direito de propor um projeto que “melhore” o trabalho empreendido pela ABL na interpretação do texto do Acordo e na confecção do Vocabulário (VOLP).

EB – A língua é uma organização criada pelo espírito humano e deve ser estudada como uma ciência. Não é domínio de palpiteiros despreparados ou inocentes bem-intencionados. Já de uma vez disse aos reformistas do movimento que “Acordar melhor” deve ser interpretado não como “fazer melhor acordo”, mas como “despertar melhor, “abrir os olhos” ao tentar dar sugestões sobre a língua.

Fonte: Thaís Nicoleti